Labor

Na Itália, trabalhador agrícola punjabi explorado é abandonado à morte.

A morte de Satnam Singh reflete a exploração severa e o tratamento desumano dos trabalhadores migrantes na agricultura italiana.
O trabalhador agrícola punjabi Satnam Singh sofreu ferimentos graves em uma fazenda italiana e faleceu em decorrência das lesões. O incidente provocou indignação pública e reacendeu o debate sobre o "caporalato," ou “sistema de capataz”, uma prática ilegal de recrutamento que afeta quase todos os trabalhadores migrantes na agricultura italiana, destacando as questões legais, políticas e culturais sistêmicas que perpetuam essa exploração.

O trabalhador agrícola punjabi Satnam Singh sofreu ferimentos graves em um acidente ocorrido numa fazenda na Itália e foi abandonado à morte pelo seu patrão. O caso chocante revelou como a agricultura italiana trata a vida dos trabalhadores migrantes como a mais barata das mercadorias.

O dia 19 de junho foi marcado pelo luto, quando a agromafia, ou máfia agrícola italiana, fez mais uma vítima. O migrante de 31 anos, Satnam Singh, morreu em um hospital em Roma, dois dias após ter seu braço decepado e as pernas fraturadas em um trágico acidente. Ele era operador de máquinas agrícolas em uma fazenda perto de Latina, uma província rural a cerca de 80 quilômetros ao sul de Roma, onde redes criminosas exploram sistematicamente o trabalho de milhares de migrantes do Punjab, na Índia. Satnam e sua esposa, Sony, trabalhavam na região sem contrato desde 2021, plantando melões por apenas €4 por hora. As ações subsequentes de seu patrão garantiram que, após se ferir, Satnam ficasse sem atendimento médico.

No momento do acidente, Satnam já estava trabalhando há 12 horas. Quando a máquina mutilou seu corpo, o padrone italiano (literalmente "dono”, como os empregadores da região gostam de ser chamados, um termo que remete à dependência feudal) impediu todos na fazenda de chamarem uma ambulância e confiscou seus celulares. Em vez de levar o inconsciente Satnam e sua esposa, que chorava desesperadamente, diretamente ao hospital, o patrão os colocou em sua van, dirigiu por quilômetros e os abandonou nos fundos da casa onde moravam, junto com os pedaços do braço decepado de Satnam, que foram deixados em uma caixa de frutas, antes de fugir. Se os tivesse levado ao pronto-socorro, o patrão teria que enfrentar as consequências legais de empregar trabalhadores sem contrato e sem proteção.

A desumanidade de suas ações causou horror generalizado, trazendo de volta ao debate público a questão do caporalato (sistema de capataz ou de recrutamento ilegal), uma prática que afeta quase todos os trabalhadores migrantes na agricultura italiana, como tem sido amplamente documentado por pesquisadores e ativistas em Latina e outras regiões ao longo dos anos. O discurso atual, centrado na "luta contra a praga do caporalato", promovido por políticos de governos passados e presentes, foi reiterado durante as greves organizadas pela Confederação Geral Italiana do Trabalho, a Confederação Italiana de Sindicatos de Trabalhadores e pela União Italiana do Trabalho em Latina, na última semana, em apoio a Satnam Singh e todos os trabalhadores explorados. A prefeita de Latina — membro do partido Fratelli d’Italia de Giorgia Meloni, convidada a falar no palco em ambas as manifestações — insistiu que o “caporalato é uma forma de escravidão que não pertence à nossa cultura, à nossa cidade e à nossa nação e, por isso, precisa ser erradicado." Ela recorreu a um velho argumento de que os italianos são brava gente, “boas pessoas.”

Mas a ênfase exclusiva no caporalato pode ser enganosa. Ela sugere erroneamente que o problema da exploração trabalhista afeta apenas migrantes sem documentação e é principalmente obra de alguns empregadores mal-intencionados e seus capatazes gananciosos e implacáveis, ou “caporali”, que muitas vezes pertencem ao mesmo grupo étnico dos migrantes. No entanto, há uma história mais complexa por trás da questão do caporalato no mercado de trabalho italiano. Trata-se de um problema que envolve todo o quadro legal, político e cultural, tornando a busca pelos caporali quase uma escolha inevitável tanto para empregadores quanto para migrantes.

Mantendo a mão de obra migrante vulnerável, dividida e explorável

Na Itália, uma política de imigração cada vez mais seletiva, alimentada pela propaganda política sobre "substituição étnica" e pelo medo de estrangeiros, impõe desafios impossíveis aos imigrantes de fora da União Europeia (UE) que buscam trabalhar e se estabelecer no país. Na prática, essas exigências não impedem a migração, mas deixam vulneráveis e exploráveis aqueles que chegam e permanecem na Itália, dando poder desproporcional aos empregadores e intermediários. Estes últimos, por sua vez, aprenderam a tirar proveito das falhas da legislação italiana, desenvolvendo um negócio que prospera na exploração e fraude descarada de milhares de homens e mulheres do Punjab e de outras regiões.

Para começar, o Estado italiano exige que os potenciais trabalhadores migrantes sejam vinculados a um empregador. Ao chegarem no país, a obtenção de seu visto de residência (e, com isso, de seu status legal) é condicionada à formalização de um contrato de trabalho com o empregador que os contratou. Os trabalhadores pagam uma taxa inicial que varia de €10 000 a €20 000 aos caporali, que organizam o acordo e dividem o dinheiro com os empregadores locais.

Os migrantes frequentemente veem os caporali como facilitadores e ajudantes, e não como traficantes — como evidenciado pelo uso da palavra neutra "agente" para se referir a eles. Esses "agentes" são vistos como prestadores de um serviço cujo valor depende das leis de oferta e demanda, assim como qualquer outro serviço. Dessa forma, o valor também varia ao longo do tempo. Se, há quinze anos, €5 000 eram suficientes para chegar ao Sul da Europa (tornando Itália, Espanha, Portugal e Grécia acessíveis até mesmo aos punjabis mais pobres e menos instruídos, que eram empregados principalmente como trabalhadores não qualificados, ao contrário dos Estados Unidos e do Reino Unido), agora a taxa triplicou. Dado que as condições socioeconômicas em Punjab continuam a piorar, o desejo de migrar, apesar dos altos custos, segue crescendo, mesmo que isso signifique contrair empréstimos ou vender bens para alcançar melhores condições de vida. Essa dívida, por sua vez, pesa fortemente sobre os migrantes e seus familiares que ficaram para trás — lançando dúvidas sobre o celebrado papel das remessas transnacionais no desenvolvimento das comunidades de origem dos migrantes.

Quando os migrantes punjabis chegam à Itália, seu contrato de trabalho prometido muitas vezes não é emitido pelo empregador responsável, ou exige-se mais dinheiro (geralmente entre €5.000 e €15.000) para converter o visto em uma permissão de trabalho oficial. Após o vencimento do visto de trabalho de nove meses, se os migrantes não conseguirem obter um contrato regular, seu status automaticamente se torna 'irregular' (o que, conforme a Lei Bossi-Fini de 2002, é considerado crime e pode levar à expulsão do país). Eles entram em um limbo de total dependência e subordinação aos seus exploradores. Sobrecarregados pelas dívidas contraídas com agiotas e bancos para pagar os agentes e caporali, e sem meios legais de solicitar uma permissão de trabalho de forma independente no país, são forçados a aceitar quaisquer condições para permanecer na Itália e pagar seus empréstimos. Sua vulnerabilidade — agravada por barreiras linguísticas, isolamento no campo, falta de apoio estatal para integração, desconhecimento de seus direitos e uma burocracia opaca, incompreensivelmente lenta e complicada — impede que denunciem seus exploradores por medo de retaliação violenta, de perderem sua única fonte de renda, de enfrentarem consequências legais ou de serem expulsos.

Assim, a possibilidade de os padroni e caporali explorarem e abusarem dos trabalhadores migrantes está implícita na própria lei. Isso é indiretamente sustentado por campanhas políticas e culturais que se concentram na criminalização e securitização da imigração, em vez da proteção dos direitos humanos e trabalhistas dos migrantes. Rotular o empregador de Satnam de monstro (embora ele realmente possa ser) é um caminho mais fácil: culpar as “maçãs podres” individuais sempre desvia a atenção das forças estruturais que lhes permitem exercer poder desde o início.

A morte de Satnam não foi um acidente causado pela "distração" de um trabalhador ao operar uma máquina, nem simplesmente pela crueldade de seu empregador. Ela é resultado de um sistema jurídico, político e cultural que viola direitos humanos fundamentais, forçando  migrantes a trabalhar em condições extremamente desumanas, reduzindo-os a um recurso descartável, para ser usado e jogado fora quando esgotado. Na Itália de hoje, existem forças sistêmicas interligadas que esmagam, mutilam e destroem os trabalhadores migrantes, abandonando-os à morte, assim como a máquina e seu proprietário fizeram com o corpo de Satnam.

Como pesquisadora de doutorado que estuda a comunidade punjabi na província de Latina, nos três anos que antecederam o incidente, entrevistei centenas de homens e mulheres na mesma condição que Satnam e Sony: sobrecarregados, mal remunerados, explorados, discriminados e sem documentação. Ouvi-os relatar suas histórias de abuso – expressando  suas queixas, mas também resignados o suficiente para considerar essa situação “normal.”

Por essa razão, não é apenas a profunda dor pela morte de Satnam's que me move a escrever, mas também a raiva, a vergonha e a vontade de me manifestar contra as inúmeras injustiças que observei. Escrevo por Jagdish, de 36 anos, que quebrou o dedo no trabalho e foi instruído pelo patrão a mentir no hospital, dizendo que o acidente aconteceu em casa, caso quisesse manter o emprego após se recuperar. Escrevo por Balvir, de 48 anos, que foi esmagado por uma carga de batatas no trabalho e abandonado pelo “dono” em casa à meia-noite. Sua esposa e sua filha de 10 anos o levaram ao hospital, dirigindo pelos campos escuros de Pontino. Escrevo por Pardeep, de 28 anos, que deixou esposa e filhos para trás, pagou €16.000 para vir à Itália e agora só quer voltar para a Índia o mais rápido possível, pois, segundo ele, “as pessoas aqui só querem te usar e pegar seu dinheiro.” Ele trabalha 10 horas por dia colhendo melancias por €2 a hora. Agora, com o visto prestes a vencer, o empregador exige que ele pague uma taxa de €5.000 para emitir um contrato de trabalho que o regularize. Escrevo por Daljeet, de 45 anos, que quebrou a coluna enquanto trabalhava em uma plantação de cogumelos há 10 anos e, após ousar denunciar, ainda espera por uma compensação. Escrevo pelo meu amigo Sandeep, de 25 anos, que trabalha 13 horas por dia colhendo abobrinhas, sendo o único da equipe sem contrato, o mais trabalhador, o mais amável. Ontem, seu patrão "brincou" que, se ele se machucasse como o Satnam, seus colegas o despejariam no canal mais próximo. Mas isso não é brincadeira.

Sobrecarregados, mal remunerados e sem documentação

O Punjab tem sido, ao longo do último século, afetado por repetidas crises econômicas, políticas, ambientais e sociais, decorrentes da divisão pós-independência da Índia e da liberalização de sua economia, levando um número crescente de punjabis a emigrar. Um estudo recente realizado pela Universidade Agrícola de Punjab constatou que 74 por cento de toda a emigração de Punjab entre 1990 e 2022 ocorreu nos últimos seis anos desse período. Hoje, o Punjabi ocupa o segundo lugar entre os estados indianos em taxa de emigração. A província Latina, ao sul de Roma – um importante centro de produção agrícola no centro-sul da Itália – tornou-se o destino mais popular para os migrantes punjabis (sete dos 10 principais municípios da Itália em número de residentes indianos registrados estão na província de Latina, segundo a agência de estatísticas públicas Istat).

O principal atrativo de Latina é a alta demanda por mão de obra no setor agrícola, aliada à presença de uma comunidade punjabi estabelecida desde a década de 1980. Para maximizar os lucros e manter os custos de produção suficientemente baixos para competir no mercado da UE, o próspero setor agroalimentar da região (como relatado pelo sociólogo Marco Omizzolo, um de seus críticos mais antigos e ferrenhos) depende de uma rede internacional de tráfico de pessoas para fornecer uma força de trabalho migrante sazonal, constantemente renovada e explorada nos campos. Essa rede envolve empregadores e profissionais italianos, caporali italianos e estrangeiros, intermediários e, às vezes, autoridades corruptas em instituições públicas.

Muitos trabalhadores punjabis realizam trabalhos manuais pesados, colhendo e embalando frutas e vegetais por 12 a 14 horas por dia, ou mais, seis ou sete dias por semana, sem qualquer proteção ou seguro. Em troca, recebem pagamentos bem abaixo do mínimo necessário para uma vida digna. Eles são recrutados por meio de um grupo do WhatsApp, onde recebem uma mensagem na noite anterior, indicando o horário e o local onde devem se apresentar na manhã seguinte, geralmente percorrendo longas e perigosas distâncias de bicicleta pelas rodovias. Aqueles sem permissão de residência, como Satnam e Sony, trabalham sem contrato. Os que conseguem um contrato geralmente o têm por poucos meses, permanecendo, assim, expostos aos caprichos dos empregadores. Essas condições os colocam em uma situação de precariedade estrutural: os empregadores não apenas podem pagar salários mais baixos e mantê-los subordinados com a ameaça de não renovar o contrato — o que comprometeria sua residência legal — mas, também, ao firmarem apenas contratos sazonais e de curto prazo, ficam isentos de garantir aos trabalhadores acesso aos benefícios previdenciários, como licença remunerada ou por doença, os quais nenhum deles recebe. Na verdade, muitos nem sequer sabem que têm direito a pagamento quando estão doentes, de licença médica, ou em férias. Quando a época de colheita termina e seus contratos expiram, simplesmente lhes dizem: "A partir de amanhã, você está livre" — uma "liberdade" que significa que não terão trabalho nem dinheiro. 

Nos contracheques, as horas de trabalho registradas são sempre consideravelmente menores do que as realmente realizadas, permitindo que o empregador economize em impostos, enquanto os trabalhadores recebem menos contribuições para a aposentadoria ou subsídios de desemprego. O pagamento é frequentemente por produção, embora os contratos formalmente indiquem um salário mensal conforme o salário negociado no CCNL – o Contrato Coletivo Nacional de Trabalho. Essa exigência de produzir mais para ganhar mais frequentemente resulta na autoexploração dos trabalhadores e, às vezes, até no consumo de drogas, como opiáceos e metanfetaminas (com a conivência de médicos e farmácias corruptos), para aliviar a dor do trabalho excessivo e levar seus corpos além dos limites da fadiga.

É assim que se forma um crescente exército de reserva de mão de obra migrante descartável e explorável. Esses trabalhadores, forçados a cumprir qualquer ordem, por mais prejudicial que seja para si mesmos e para os outros, têm sua disponibilidade constantemente utilizada para minar os esforços de outros trabalhadores e sindicatos na negociação por salários mais altos e melhores condições de trabalho, impedindo a união na luta por seus direitos. O poder desagregador do sistema capitalista extrativista é tão grande que a solidariedade é frustrada, mesmo entre trabalhadores da mesma terra natal. Todos desconfiam da pessoa ao lado e de sua suposta "inveja": o outro se torna um concorrente, um inimigo, um obstáculo à própria sobrevivência. De forma perturbadora, soubemos que os colegas de Satnam hesitaram em testemunhar por medo de perder seus empregos. Quão desesperados eles devem estar para ainda desejarem esse trabalho, mesmo sabendo que, se se machuquem, serão abandonados à morte em seu próprio sangue – e depois responsabilizados por isso?

Os suicídios de trabalhadores agrícolas punjabis, sobrecarregados por dívidas e desespero — como o caso infame do jovem de 25 anos, Joban Singh, que tirou a própria vida em 2020 — evidenciam as consequências devastadoras desse sistema criminoso de exploração e tráfico. Aquele suicídio, assim como a morte de hoje, diz respeito a todos nós. Estamos envolvidos quando consumimos, sem questionar, os alimentos baratos produzidos através da exploração e abuso sistêmicos de homens e mulheres que permanecem invisíveis e oprimidos. Estamos envolvidos em uma Itália que falha sistematicamente em proteger seus trabalhadores mais vulneráveis das múltiplas forças que os estrangulam, dividem e, eventualmente, os matam. A Itália é um Estado cuja constituição se proclama como "uma república democrática, fundada no trabalho." No entanto, esse mesmo Estado negligencia os trabalhadores mais vulneráveis, aqueles que, com cuidado e trabalho nos campos, sustentam a própria vida do país. 

Annamaria Laudini é antropóloga e pesquisadora de doutorado no Instituto Universitário Europeu em Florença, Itália.

Available in
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Author
Annamaria Laudini
Translators
Edinei Biondi, Erika Perillo and ProZ Pro Bono
Date
29.08.2024
Source
Original article🔗
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