Ecology

Combustíveis, Cartéis e OGMs: novos desafios no campo venezuelano

Combustíveis e insumos mais caros, cartéis do agronegócio e sementes de OGMs são ameaças à soberania alimentar da Venezuela, segundo os coletivos populares.
Nos últimos anos, uma crise econômica, fortemente exacerbada pelas sanções dos EUA, levou à liberalização das políticas econômicas. O campo venezuelano não tem sido poupado.

Desde o início do Processo Bolivariano, o governo Hugo Chávez implementou políticas para democratizar a produção de alimentos na Venezuela.

Da Lei de Terras de 2001 à nacionalização ou criação de empresas como a AgroPatria ou Pedro Camejo (1), o objetivo era garantir que o setor não ficasse sujeito aos caprichos do mercado, e apoiar a produção de pequeno e médio porte, especialmente das organizações de poder popular.

Um obstáculo atrás do outro

As ferramentas que uma vez sustentaram a produção dos camponeses foram desaparecendo gradualmente. Com as chamadas "alianças estratégicas", empresas que forneciam sementes e fertilizantes (AgroPatria) ou tratores (Pedro Camejo) foram cedidas ao setor privado. Este novo esquema beneficia sobretudo os grandes produtores.

Por exemplo, as usinas de açúcar foram entregues a proprietários privados, com consequências devastadoras para os plantadores de cana.

O último golpe foi o decreto governamental determinando que o diesel fosse vendido a 50 centavos de dólar o litro, um preço que pode ser inacessível para muitos camponeses. Em meio à grave escassez de combustível, o diesel era obtido por meio do plano de racionamento ou no mercado negro, mas pouco a pouco a venda a preços "internacionais" se tornou generalizada. O diesel é crucial para a agricultura, pois abastece os tratores que aram a terra e os caminhões que transportam as safras.

"A escassez de combustível tem sido mais difícil para nós do que a pandemia (Covid-19)", disse Ricardo Miranda, do coletivo Pueblo a Pueblo, à Tatuy Tv.

O Pueblo a Pueblo reúne cerca de 270 famílias camponesas no centro-oeste do país. Seu principal objetivo é se conectar diretamente com as comunidades urbanas organizadas para distribuir alimentos a preços justos, sem intermediários.

Embora o diesel a 50 c/L tenha se tornado "oficial" recentemente, Miranda disse que em estados como Trujillo as alternativas são comprá-lo a US$ 2 o litro de contrabandistas ou entrar em filas de espera que podem durar semanas.

"Este preço tem um efeito cascata sobre todos os orçamentos e custos de transporte. Isto significa um fardo maior para o povo e outra fonte de inflação", afirmou o membro da Pueblo, acrescentando que o combustível subsidiado que resta foi direcionado aos grandes produtores.

Andrés Alayo, porta-voz da Plataforma de Luta Campesina, também declarou que atualmente "os custos de produção são altíssimos" para os camponeses.

"Entre o combustível dolarizado, o aumento de preços dos insumos e do arado etc., os produtores estão em uma situação muito delicada", resumiu.

Por sua vez, Miranda salientou que, mesmo em condições difíceis, as famílias camponesas continuam produzindo e fornecendo uma grande porcentagem dos alimentos que são consumidos. Em sua opinião, as circunstâncias atuais levaram a uma expansão das práticas agroecológicas e a alianças entre as organizações de base. Pueblo a Pueblo tem atualmente um programa com o Ministério da Educação e com coletivos urbanos para suprir cerca de 250 cantinas escolares em todo o país.

Ainda assim, os obstáculos para os pequenos e médios produtores são apenas uma parte do quadro. O outro lado é um campo de forças que se inclina cada vez mais em favor dos grandes proprietários de terras e do agronegócio.

Cartéis e dumping

"O setor que mais cresceu na Venezuela nos últimos anos tem sido a agroindústria", disse Alayo à Tatuy Tv. A crescente influência de grandes conglomerados já começa a ser sentida.

Nas últimas semanas, houve vários protestos de produtores de milho que exigem que o governo regulamente os preços da colheita. Embora algumas instituições, incluindo a vice-presidência, tenham se comprometido a atender às preocupações, não houve resposta até o momento.

De acordo com o porta-voz da Plataforma da Luta Campesina, há uma clara dinâmica de "cartel" em jogo. "Para as agroindústrias é muito barato importar milho, e elas o fazem para estabelecer preços completamente inviáveis para os produtores nacionais". Alayo destacou que é prerrogativa do Estado "intervir" e proteger a sua soberania.

A Plataforma, que desempenhou um papel fundamental na Admirável Marcha Campesina de 2018, não descarta outra mobilização em massa em defesa dos direitos dos camponeses nas próximas semanas.

Miranda expressou uma opinião semelhante: "os monopólios pressionam o governo", que não só não apoia os camponeses como deixa o mercado ser controlado pelos  setores empresariais. "É uma perspectiva cada vez mais prevalecente que vê os alimentos como uma mercadoria", concluiu.

Outra "ameaça" para os produtores rurais foi a reabertura da fronteira entre a Venezuela e a Colômbia. De acordo com Alayo, grupos de camponeses da região andina estão soando o alarme por causa de um "dumping massivo" de mercadorias colombianas, especialmente vegetais.

"Se os nossos camponeses falirem, o agronegócio colombiano assumirá o mercado e aumentará os preços", advertiu.

Por sua vez, Miranda explicou que os produtos colombianos cruzaram informalmente a fronteira nos últimos anos apenas pagando "impostos" clandestinos ao que então era designado como um "protetorado" do governo no estado de Táchira (2). No entanto, ele acredita que a regularização dos postos fronteiriços e a cobrança de tarifas alfandegárias de importação/exportação em ambos os lados acabarão por mitigar o impacto dos alimentos provenientes do país vizinho da Venezuela.

A batata é um alimento prioritário para a Pueblo a Pueblo. "A Colômbia tem acordos de livre comércio que levaram o seu mercado a ser inundado por batatas estrangeiras (por exemplo, batatas fritas congeladas), que depois tiveram consequências deste lado da fronteira", detalhou, afirmando que as batatas colombianas eram muito mais baratas do que as da Venezuela.

As políticas aduaneiras de Gustavo Petro e a reativação da produção venezuelana após a pandemia permitiram que a Pueblo a Pueblo voltasse a montar o seu programa "batatas para a vida, não para o capital". As organizações camponesas armazenam batatas durante meses em uma alta altitude, antes de lançá-las no mercado a preços justos, para enfrentar a especulação.

Um cenário (geneticamente) modificado

O crescimento do agronegócio na Venezuela tem sido bastante visível, e foi até exibido em transmissões governamentais. Há grandes extensões de terra que cultivam principalmente dois produtos: milho e soja. Mas esta prática tem outra faceta a ser levada em conta: o uso de sementes geneticamente modificadas.

"Os camponeses denunciaram a presença de sementes OGM em diferentes partes do país. Isto viola a Lei de Sementes de 2015", disse Esquisa Omaña à Tatuy Tv. Ela é membro da campanha "Venezuela Livre de Transgênicos".

A organização não teve acesso às supostas sementes, mas pediu à Comissão Nacional de Sementes da Venezuela (Conasem) que investigasse as reclamações. Entretanto, segundo Omaña, não há atualmente "nenhuma competência ou interesse" das instituições em resolver a situação.

A ativista, que também é pesquisadora no centro CiECS em Córdoba, Argentina, disse que uma prática comum é trazer milho rotulado para consumo que é depois reembalado e semeado. O uso de sementes geneticamente modificadas é ilegal, a importação de alimentos geneticamente modificados não é.

"A questão da soberania alimentar é fundamental, mas embora as conseqüências dos OGM sejam bem conhecidas", afirmou Omaña, "as sementes vêm com um pacote tecnológico, com produtos químicos como o glifosato, que contaminam o ar e os solos. É o modelo mortal do agronegócio", concluiu, referindo-se a estudos que mostram como as substâncias tóxicas vão parar nos tecidos leves.

A campanha "Venezuela Livre de OGMs" argumenta que a legislação sobre embalagens, alertando os consumidores para a presença de OGMs, é uma prioridade. Leis semelhantes foram promulgadas na Europa e em outros lugares.

Ao mesmo tempo, Omaña trouxe à tona a importância de "trabalhar para a conscientização pública" e gerar hábitos de consumo mais saudáveis. Ao optar mais por leguminosas (por exemplo, feijão), tubérculos (por exemplo, batata doce) e musáceas (por exemplo, bananas) que não estão associadas ao agronegócio, as pessoas, por sua vez, ficarão menos vulneráveis a esses interesses.

A crise e o bloqueio estadunidense tiveram consequências devastadoras para o povo venezuelano, da deterioração das condições de vida à migração em massa.

Em um contexto onde as sanções estão firmemente estabelecidas e há sinais positivos de recuperação econômica, é igualmente claro que há um processo de reconfiguração em curso que entrega o protagonismo ao setor privado e às corporações multinacionais.No que diz respeito à produção de alimentos, o agronegócio se tornou o principal agente, com o governo apelando abertamente para o investimento estrangeiro no setor e oferecendo todas as vantagens possíveis. É uma visão "pragmática" que impõe a lógica capitalista, ou que permite que ela se imponha.

Do outro lado estão as famílias camponesas, algumas organizadas, outras não, enfrentando dificuldades crescentes para seguir produzindo. A falta de apoio do Estado é agravada pelas práticas de cartel das corporações e pela penetração dos OGMs. As ameaças à segurança alimentar e à soberania alimentar da Venezuela continuam crescendo.

Porém, ao mesmo tempo, os movimentos camponeses têm mostrado repetidamente que estão prontos para lutar, seja para acelerar mudanças radicais ou para resistir a ataques às conquistas da Revolução Bolivariana.

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)Spanish
Author
Ricardo Vaz
Translators
Rodolfo Vaz and Cristina Cavalcanti
Date
20.12.2022
Source
Original article🔗
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