O Ocupe Estelita, realizado no Recife (PE) e que agora completa 10 anos, é um exemplo marcante da força e dos limites dos movimentos sociais na disputa pelo espaço urbano. Nas cidades convivem pessoas de diferentes classes sociais, e onde essa diferença é muito marcante coexistem espaços sem o mínimo necessário para uma vida digna, como as palafitas da bacia do Pina, e projetos de luxo, como o que está sendo erguido numa antiga área destinada ao transporte público, ali, bem defronte às palafitas, recentemente removidas.
Caracterizado por uma verticalização fora dos padrões e dos limites, o projeto se apresentou como uma verdadeira barreira, composta de 12 torres com mais de 40 pavimentos e cem metros de altura, a interferir na paisagem, na memória da cidade e no ambiente natural, pela barreira aos ventos marinhos, e histórico, e pela proximidade do marco zero de Recife (Veras, 2014).
Do outro lado da disputa, as empresas imobiliárias, com argumentos que não justificam a falta de limites. Agentes políticos que apoiaram o projeto defenderam a “requalificação” da “área abandonada”, e técnicos de transporte público se entusiasmaram com a possibilidade da instalação de um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) para atender à nova demanda.
O terreno do Projeto Novo Recife, onde funcionava o pátio de manobra das linhas que ligavam o Porto do Recife ao interior do estado, está situado no limite entre a área de expansão imobiliária de Pina/Boa Viagem e o Bairro do Recife, às margens da Bacia do Pina. Para enfrentar o poder econômico do capital imobiliário, representado pelas quatro construtoras do Consórcio Novo Recife, os ativistas travaram batalhas em diferentes frentes. Uma delas foi a luta pelo tombamento do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, onde ainda havia antigos armazéns de açúcar. Na solicitação de tombamento foi ressaltada a unidade de conjunto da Ilha Antônio Vaz, que teve início com Maurício de Nassau (entrevista Tomás Lapa, 2017), e que havia sido fundamental no reconhecimento do Bairro do Recife como patrimônio nacional.
Outra frente de luta era o licenciamento no Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) da Prefeitura, do qual participavam técnicos municipais, representantes do Iphan, da Superintendência de Patrimônio da União (SPU), do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e do legislativo municipal e estadual, além dos representantes de ONGs de assessoria a movimentos sociais e outros representantes da sociedade civil. Na frente judicial, contaram com a colaboração de membros do Ministério Público estadual e federal.
O terreno, que em princípio também havia sido objeto das propostas do “Complexo Cultural Recife/Olinda” – projeto de desenvolvimento baseado no turismo, elaborado em parceria dos três níveis de governo – foi leiloado em 2008, e o Projeto Novo Recife foi apresentado ao CDU em 2012. A partir do momento em que tomaram conhecimento do que foi considerado “um dos maiores equívocos urbanísticos” da cidade, acadêmicos, ativistas, técnicos, membros de ONGs e jovens ativistas, todos os que não concordavam com o projeto começaram a se mobilizar, sempre a partir de convocações via redes sociais, principalmente do Grupo “Direitos Urbanos”. O auge aconteceu durante a ocupação do terreno, por 27 dias, entre maio e junho de 2014.
O que ficou conhecido como Movimento Ocupe Estelita conseguiu cancelar várias reuniões do CDU, com a ajuda da justiça, mas o projeto acabou sendo aprovado numa sessão a portas fechadas, nos últimos dias do mandato de João da Costa (PT), mesmo sem os estudos de impacto, as anuências prévias ou o plano urbanístico exigido pelo Plano Diretor, e com várias ações judiciais em curso.
Ocupações em frente ao terreno já aconteciam desde 2012, e em abril de 2013 mais um “ocupe” foi realizado. Na noite de 21 de maio de 2014, uma tentativa de demolição dos armazéns, apesar das decisões judiciais contrárias, só não ocorreu porque moradores locais avisaram a militância. A informação circulou rapidamente e mais de 200 pessoas correram ao local, conseguindo interromper a demolição.
Para impedir que a demolição recomeçasse, surgiu a ideia de ocupar o Cais; os ativistas trouxeram barracas e mantimentos e resolveram passar a primeira noite. No dia seguinte, a demolição foi embargada pelo Iphan, e alguns advogados do movimento obtiveram, em negociação com a polícia, o compromisso de suspensão da reintegração de posse até a conclusão do processo.
A ocupação ganhou forte apoio da classe artística recifense: Kléber Mendonça, Nação Zumbi, Otto e Karina Buhr, Ney Matogrosso e Zélia Duncan, foram alguns dos nomes que apoiaram o MOE, além das apresentações dos blocos “Empatando Tua Vista” e “Eu acho é pouco”, e o “Som na Rural”, projeto de música itinerante que fornecia estrutura para os eventos e shows gratuitos que levaram aproximadamente 10 mil pessoas ao Estelita ocupado. David Harvey, influente geógrafo estadunidense, visitou a ocupação e elogiou a união da luta com a festa.
As reivindicações dos membros do movimento eram: ao menos 30% de habitação popular no local, um tratamento urbanístico que tratasse a área com a complexidade que esta demandava, e que sua discussão fosse feita no Conselho da Cidade, recém regulamentado, considerado mais democrático que o CDU.
O novo prefeito, Geraldo Júlio (PSB), tentou intermediar uma negociação com a criação de um fórum composto por entidades representativas de advogados, engenheiros, arquitetos e da universidade, além dos empresários e ativistas. No entanto restaram dois pontos irreconciliáveis no documento final: a suspensão da aprovação do projeto, do lado do consórcio, e a desocupação do terreno, por parte do movimento. Embora o documento estabelecesse prazos e diretrizes para o “redesenho” do projeto, na verdade a prefeitura já contava com o recurso à violência para a desocupação – que aconteceria no dia seguinte, num feriado de jogo da seleção brasileira da Copa de 2014.
Sob as ordens do então governador de Pernambuco, João Lyra (PSB), a tropa de choque e a cavalaria da PM usaram de muita violência para a retirada dos ativistas. Além de expulsar os ocupantes, a polícia destruiu documentos e equipamentos, sumiram computadores, barracas e bens pessoais, com saldo de quatro pessoas presas e dezenas feridas, “entre crianças, pessoas idosas e, inclusive, uma mulher grávida”, com repercussão na imprensa nacional e internacional. Depois da desocupação, parte dos manifestantes ainda permaneceu alguns dias sob a alça do viaduto próximo, com atividades educativas e de mobilização (Varejão, Rafael e Araripe, 2016).
Enquanto isso, no escritório de arquitetura de uma das empresas, foi iniciado o “redesenho”, mas sem a participação dos manifestantes. A proposta resultante foi apresentada em uma coletiva de imprensa no dia 10 de setembro de 2014, sem acesso ao público. Consistia em alterações no sistema viário, abertura de ruas transversais e ligação com a Avenida Dantas Barreto; o parcelamento aumentava de cinco para oito quadras, os prédios próximos ao Forte das Cinco Pontas seriam mais baixos, com mais uma torre na outra extremidade. O uso passou de residencial para uso misto, com 65% de área verde. Houve pequenos ganhos frente ao projeto original.
Os ativistas denunciavam a falta de um plano urbanístico específico para grandes glebas, exigência do Plano Diretor do Recife. O prefeito resolveu elaborar uma proposta que incluía o Cais de Santa Rita, Cais José Estelita e Cabanga, mas que “começou ao contrário: com um projeto imobiliário, que já tinha sido aprovado” a partir do qual a Prefeitura “construiu um Projeto de Lei que se encarregava de transpor o projeto imobiliário para a dimensão do plano urbanístico” (Varejão, Rafael e Araripe, 2016). Sua aprovação ocorreu em maio de 2015, numa votação extra pauta do legislativo municipal, ao que o movimento reagiu ocupando a área externa da Câmara de Vereadores, com manifestações que duraram vários dias, incluindo um acampamento na frente da casa do prefeito.
Quando tudo já parecia perdido, uma Ação Civil Pública, iniciada em 2011, deflagrou em 2015 a Operação Lance Final, da Polícia Federal, com mandados de busca e apreensão de documentos, nas sedes das empresas, na Superintendência de Patrimônio da União (SPU) e no DNIT, investigando possíveis irregularidades do leilão do terreno.
O terreno fora alienado em 3 de outubro de 2008, através de um leilão realizado pela Milan Leilões, empresa ligada à Caixa Econômica Federal, em São Paulo e não no Recife, sob a justificativa de que assim seria facilitada a participação de outras empresas de qualquer lugar do Brasil. Mas apenas o Consórcio Novo Recife compareceu e arrematou o terreno, de quase onze hectares, por 55 milhões de reais, ou 545 (quinhentos e quarenta e cinco) reais por metro quadrado, quando o preço médio à época era de mais de seis mil reais. (Varejão, Rafael e Araripe, 2016:292)
A Polícia Federal afirmou em nota que haviam sido obtidas evidências de fraude ao caráter competitivo no leilão, o que configura crime previsto na lei de licitações (Artigo 90 da Lei 8.666/93), e foi requerido à Justiça Federal o sequestro do imóvel arrematado. Acionado, o juiz Roberto Wanderley Nogueira anulou o leilão, em 28 de novembro de 2015, e determinou a devolução da área para o Patrimônio Público da União, além de ordenar que a Prefeitura se abstivesse de autorizar “todo e qualquer projeto que controverta ao ambiente histórico, paisagístico, arquitetônico e cultural das áreas do entorno do forte das Cinco Pontas, incluindo o Cais José Estelita, sob as penas da lei.”
O reconhecimento do valor histórico do antigo pátio de manobras era considerado o principal recurso na luta contra o empreendimento. Embora o Iphan tenha publicado a homologação do valor histórico, artístico e cultural da área operacional do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, em 17 de março de 2015, e a inscrição do trecho na lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, tal reconhecimento não assegurava o tombamento da área. Os recursos interpostos pelos réus, a Prefeitura e o consórcio, foram aceitos pelo Tribunal Regional, que reviu a decisão do juiz, a partir da conclusão do Iphan que negou o tombamento do Pátio Ferroviário.
A demolição dos armazéns começou em março de 2017, apesar de novas tentativas dos manifestantes, que denunciavam a celeridade suspeita da Prefeitura na concessão da licença de demolição imediatamente após a decisão do Iphan. As obras das três primeiras torres começaram em 2019, e estão sendo concluídas, com os apartamentos das três primeiras torres disponíveis para venda.
Os movimentos sociais urbanos lutam pelos investimentos essenciais para a vida na cidade, cujos administradores aos poucos se adaptaram ao “gerenciamento” ou “empresariamento urbano”, quando a economia mundial iniciava a guinada à direita conhecida como neoliberalismo e a cidade passou a ser tratada como instrumento de lucro. Os conflitos são pacificados pelo cappuccino (Saskia Sassen), o entretenimento e a festa, a indústria cultural e o turismo patrimonial (Choay, 2001).
As características desse tempo do mundo são explicadas por Polanyi (2012) através da grande transformação que ocorreu com a economia a partir do início do capitalismo, quando os mercados passaram a prevalecer de forma absoluta, em vez do enraizamento nas relações sociais das épocas anteriores, quando “as equivalências entre diferentes bens eram estabelecidas pela tradição ou pela autoridade” e “a estabilidade, e não a flutuação, era a norma”. Tudo foi trocado pela universalização do mercado, que introduz uma diferença de grau que resulta numa organização social inédita, mas não “natural”, e sim baseada numa pesada intervenção de poderes privados e estatais, um “moinho satânico”, que, conforme previu Marx (2017), precisa estar sempre em funcionamento.
Surgem a cada dia novas formas de exploração e acumulação, como a “acumulação por espoliação” atual do neoliberalismo (Harvey, 1992) um capital “despudorado” e fictício, sem limites, que circula pelo mundo sem restrições e que não gera melhorias que sejam apropriadas por maiorias – só gasto suntuoso, improdutivo ou guerra.
As verticalidades do capital encontram resistência, no entanto, na horizontalidade da vida concreta, na luta cotidiana. A resultante, a conformação espacial e social, será definida a partir da capacidade das redes e dos atores do lugar (Santos, 2005). Luta que tem também outros ganhos, de consciência, de camaradagem, de solidariedade, alegria e festa, que cativa e empolga seus participantes, que passam a ver mais sentido na vida e a ter mais esperança de futuro.
Marta Santa Cruz Pordeus é Arquiteta e Urbanista. Mestre em Desenvolvimento Urbano e membro da Rede BrCidades.
Foto: Outras Palavras
Referências Bibliográficas
Arantes, Paulo (2014) O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo.
Choay, Françoise (2001) A alegoria do patrimônio. São Paulo, UNESP.
Harvey, David (2014) Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes.
____________ (1992) Condição pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola.
Marx. Karl (2017) O Capital Crítica da Economia Política Livro 1. São Paulo: Boitempo.
Santos, Milton (2005) O retorno do território. Observatório Social de América Latina no. 16. Buenos Aires: CLACSO.
____________ (2009) A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Varejão, L; Rafael, R; e Araripe, V. “A disputa entre o Novo Recife e o Recife que queremos: a trajetória do conflito pelo Cais José Estelita” in Oliveira, Fabrício Leal de (org) (2016) Planejamento e conflitos urbanos: experiências de luta. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora.
Veras, Lúcia (2014) Paisagem Postal: A imagem e a palavra na compreensão de um Recife urbano. Tese de doutoramento em Desenvolvimento Urbano. Recife: MDU/UFPE.