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Restrospectiva 2022: o momento da verdade Palestina

2022 dissipou as ilusões de que a colaboração palestina com Israel é sustentável e que o sionismo seja algo mais do que um movimento em guerra constante com o povo palestinino.
2022 foi um momento de verdade, um ano que revelou a realidade política na Palestina dissipando quaisquer ilusões que possamos ter tido sobre a natureza do "conflito", como tem sido chamado pelos meios de comunicação. Duas dessas ilusões podem ser imediatamente descartadas: para os palestinos, que o colaboracionismo da Autoridade Nacional Palestina pode ser mantido indefinidamente, e para o Estado israelense, que o sionismo é algo mais do que um projeto de colonialismo de ocupação que está constantemente em guerra com o povo palestino.

Dois acontecimentos deixaram tais verdades bem claras.

Na Cisjordânia, foi o retorno da resistência armada organizada pela primeira vez desde a Segunda Intifada, concentrada nas cidades de Nablus e Jenin e acompanhada por uma série igualmente formidável de ataques de "lobos solitários" contra alvos militares e coloniais israelenses, representando uma grave ameaça à estabilidade do aparelho de segurança israelense. A resposta do Estado israelense foi lançar uma ampla campanha militar em toda a Cisjordânia, destinada a quebrar a resistência palestina. O exército israelense a chamou de "Operação Quebrar a Onda". 

Em Israel, foi a ascensão da direita fascista e o surgimento de Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich como os novos reis da política israelense, mostrando ao mundo a verdadeira face do sionismo. O que a ascensão do partido "Poder Judaico" e do partido Sionismo Religioso deixou claro é que o Estado israelense estará sempre em guerra com o povo palestino enquanto este resistir à colonização das suas terras.

Os acontecimentos deste ano apenas serviram para validar estas verdades. Isso está evidente na intensificação dos ataques coloniais contra palestinos ao longo do ano; nas medidas judiciais israelenses que sancionam o confisco colonial de terras palestinas; na limpeza étnica de comunidades como as de Masafer Yatta; no deflagrar da “Operação Quebrar a Onda”, e o cerco israelense às comunidades e cidades que davam abrigo aos novos grupos de resistência;. e ainda mais importante, no grito desafiador de uma nova geração que finalmente ousou pegar em armas, em um momento em que a liderança do passado preferiu curvar a cabeça.

No primeiro mês da investida militar de Israel, ficou claro que o exército israelense não só atacou os grupos armados estacionados em Nablus e Jenin, como também lançou um ataque contra toda a sociedade palestina. Durante cada ofensiva a cidades e aldeias palestinas, o exército israelense reavivou a sua velha política de liquidação e matança extrajudicial, instrumentos necessários para restaurar a tática de dissuasão israelense. Tanto os combatentes como os não combatentes palestinos caíram perante os esquadrões da morte israelenses durante as invasões noturnas, fazendo lembrar os banhos de sangue da Operação Escudo Defensivo em 2002.

O objetivo mais amplo desta ofensiva contra vidas palestinas era claro: aumentar o custo da resistência na esperança de que os palestinos simplesmente desistiriam face à crescente contagem de corpos

No entanto, tudo isto parece ter aumentado a determinação dos palestinos em rejeitar a constante degradação das suas vidas. Se 2022 nos ensina alguma coisa, é que os palestinos nunca aceitarão apenas sobreviver sob o colonialismo.

Mais grupos de direitos humanos reconhecem o apartheid israelense

O ano começou com mais reconhecimento do Apartheid israelense, com um relatório da Anistia Internacional acusando Israel do crime de apartheid, dizendo que "se trata de um crime contra a humanidade, e tem de acabar".

O relatório de 280 páginas chegou um ano após relatórios semelhantes das organizações Human Rights Watch e B'Tselem, e foi recebido com reações negativas de Israel e seus apoiadores, que acusaram o relatório de ser antissemita. Por outro lado, foi amplamente acolhido entre organizações e indivíduos que apoiam o movimento pela liberdade e justiça palestina, e foi elogiado como mais um passo na direção certa para o reconhecimento da verdadeira natureza da realidade enfrentada pelos palestinos que vivem sob controle israelense. 

Num notável afastamento em relação a relatórios internacionais e israelenses anteriores, o relatório da Anistia leva em consideração os milhões de refugiados palestinos que vivem no exílio, a quem Israel nega o direito de regressar às suas terras natais. O relatório ficou, contudo, aquém em alguns aspectos, incluindo o não reconhecimento do direito coletivo do povo palestino à autodeterminação e o papel do colonialismo de ocupação sionista como o motor do apartheid israelense. 

Essas lacunas foram trazidas de volta à conversa no final do ano por uma coligação de grupos de direitos humanos palestinos que divulgou um relatório histórico intitulado "Apartheid israelense: Ferramenta do Colonialismo de Ocupação Sionista".

Segundo os seus autores, o objetivo do relatório, publicado pelo grupo palestino por direitos humanos Al-Haq, é reformular a conversa em torno do apartheid israelense para centrar as narrativas palestinas sobre seu próprios despejos e migrações forçadas, reconhecer o direito coletivo do povo palestino à autodeterminação, e dar prioridade à descolonização em detrimento de abordagens de "igualdade liberal" para acabar com o apartheid.

A comunidade internacional falha ao não agir sobre a  sobre a criminalização da sociedade civil palestina por parte de Israel

Outro aspecto menos proeminente do ataque israelense à sociedade palestina foi o seu ataque combinado à sociedade civil - especificamente, as seis organizações palestinas  de direitos humanos que Israel tentou anteriormente criminalizar, designando-as como "organizações terroristas". 

As seis organizações, Al-Haq, Bisan Center for Research and Development, Addameer Prisoner Support and Human Rights Association, Defense for Children International – Palestine, Union of Agricultural Work Committees, e Union of Palestinian Women’s Committees tornaram-se o alvo da campanha de difamação de Israel anos atrás. 

Apesar dos esforços israelenses, em Junho deste ano, a União Europeia rejeitou a designação das organizações como "terroristas", citando falta de provas. Isto veio depois de Israel ter deportado o diretor da Human Rights Watch em 2019.

Dois meses após a negação da UE a respeito da campanha difamatória pelo governo de Israel, o exército israelense invadiu escritórios dessas organizações, e mais o de uma sétima organização - a Union of Health Work Committees (UHWC) - e soldou as portas desses estabelecimentos, deixando uma ordem militar proibindo a continuação de suas atividades.

A tentativa de fechar estas organizações surgiu no meio de uma completa ofensiva militar por toda Cisjordânia, que limitou as capacidades dos empregados e trabalhadores para desempenharem as suas funções, ao enfrentarem as acusações não substanciadas contra eles. 

Outro perigoso desdobramento estendeu-se para além da sociedade civil e visou os residentes palestinos de Jerusalém, exemplificado pela expansão do poder judicial do tribunal israelense para expulsar ainda mais palestinos da cidade. Essa prática foi exemplificada este ano na deportação de Salah Hammouri, um palestino nascido em Jerusalém com cidadania francesa e carteira de identidade local. O status de residência de Hammouri foi revogado sob a lei discriminatória israelense de "violação da lealdade", que exige lealdade de um povo colonizado ao Estado que o coloniza.

Os residentes de Masafer Yatta perdem uma batalha judicial de 20 anos

Após uma batalha judicial que durou mais de 20 anos nos tribunais israelenses, os residentes palestinos de Masafer Yatta, ou as Colinas do Hebron do Sul, tiveram o seu destino decidido pelo Supremo Tribunal israelense em Maio. O tribunal decidiu que os palestinos, que são cerca de 1.300 pessoas, residiam "ilegalmente" em terras que foram declaradas zona militar de tiro israelense nos anos 90 - apesar de os residentes dizerem que lá residiam décadas antes. 

A decisão do tribunal abriu caminho para os militares israelenses demolirem centenas de casas em Masafer Yatta, e expulsarem à força os residentes das suas terras - uma medida que equivaleria a uma transferência forçada, considerado um crime de guerra na lei internacional. 

Pouco menos de 900 estruturas estão sob ameaça iminente de demolição na "zona de tiro". Essas estruturas incluem casas, currais, latrinas, cisternas de água, mesquitas e escolas.

Apesar dos protestos internacionais sobre a decisão, os militares israelenses demoliram desde então dezenas de estruturas, incluindo uma escola em Masafer Yatta, enquanto os residentes têm sido submetidos a uma violência colonial crescente contra as suas comunidades.

O assassinato de Shireen Abu Akleh: falha dos EUA em fazer justiça

No segundo mês após deflagrar oficialmente a Operação Quebrar a Onda, a campanha militar israelense em grande escala para erradicar grupos armados da resistência palestina, a proeminente jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh foi morta pelo exército israelense quando vestia o seu colete de imprensa enquanto cobria uma invasão israelense do campo de refugiados de Jenin. 

Porta-vozes militares israelenses tentaram culpar palestinos armados, que naquele momento enfrentavam a invasão israelense, e um porta-voz disse que Abu Akleh e os seus colegas jornalistas estavam "armados com câmeras". 

No meio da incapacidade de esclarecer o assassinato, investigações independentes por várias organizações e agências de notícias mostram que a bala que matou a venerada jornalista veio do exército israelense. Quase meio ano depois, não houve responsabilização pela morte de Abu Akleh, apesar de o exército israelense ter admitido que provavelmente matou a venerada jornalista "por engano". Do lado americano, a administração Biden opôs-se à busca por justiça para Shireen por parte da organização de notícias Al-Jazeera no Tribunal Penal Internacional (TPI).

A morte de ِAbu Akleh também trouxe à tona o fato de jornalistas palestinos serem alvos intencionais. Em 2008, o operador de câmera da agência de notícias Reuters, Fadel Shana, de 23 anos, foi morto enquanto trabalhava, juntamente com outras oito pessoas,- a maioria com menos de 16 anos de idade. Em 2014, outra jornalista, Simone Camilli, de 35 anos, estava trabalhando para a agência de notícias Associated Press quando também foi morta mesmo usavando o seu colete de imprensa em Gaza. Só nas últimas duas décadas, 25 jornalistas foram mortos na Palestina.

A morte de Abu Akleh foi também precedida pelo brutal ataque à sua colega Guevara Budeiri no ano passado, no bairro de Sheikh Jarrah, enquanto cobria a violência colonial. O correspondente da CNN Ben Wedmann, juntamente com o fotojornalista da AP Mahmoud Alian, também foram agredidos. Nenhum policial israelense foi responsabilizado. Em vez disso, Itamar Ben-Gvir, o colonizador que ergueu um "gabinete" em Sheikh Jarrah no ano passado e que apoiou explicitamente o assassinato de palestinos, acabou tornando-se um poderoso ministro no controle das forças armadas israelenses.

Biden visita a Cisjordânia ocupada, oferece banalidades e sucessões econômicas

Em meados de Julho, o Presidente dos EUA Joe Biden embarcou num tour pelo Oriente Médio, incluindo uma viagem a Israel e ao território palestino ocupado. Na sua viagem de dois dias, Biden visitou hospitais na Jerusalém Oriental ocupada e realizou uma coletiva de imprensa com o Presidente palestino Mahmoud Abbas na Cisjordânia. 

Embora o público palestino estivesse menos optimista que a visita de Biden pudesse trazer avanços importantes em relação à situação política no território, a elite política palestina esperava que a viagem pudesse trazer alguns benefícios. Após a ruína deixada pelo ex-presidente Donald Trump, cujo mandato levou à deterioração quase total das relações diplomáticas entre a Autoridade Nacional Palestina e o governo dos EUA, havia esperanças de que Biden pudesse mudar a maré dos quatro anos anteriores. 

Sobre a mesa havia esperanças de que Biden pudesse reabrir o consulado norte-americano em Jerusalém Oriental, que era dedicado ao serviço aos palestinos, ou tomar uma posição real sobre o assassinato da jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh, cuja morte apenas dois meses antes foi, para muitos palestinos, um assunto central durante a visita de Biden. 

Mas, em vez disso, Biden optou por prosseguir com "medidas de construção de confiança" que, embora acolhidas pela Autoridade Palestina, deixaram a maioria dos palestinos frustrados e zangados, pois viam a visita do auto-declarado presidente "sionista" como nada mais do que um oferecimento de banalidades face a um regime de apartheid, apoiado e financiado pelos EUA. 

Para além de reabastecer os fundos norte-americanos à UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente), que foram cortados por Trump, Biden também prometeu 100 milhões de dólares em fundos para hospitais em Jerusalém Oriental, fundos para ajuda humanitária, e programas que "promovem a colaboração e o intercâmbio israel-palestino". Também prometeu que Israel permitiria aos palestinos alcançar a conectividade 4G até ao final do ano, e que as restrições de viagem pela ponte Allenby com a Jordânia também seriam aliviadas. 

Ao final do ano de 2022, os palestinos ainda usavam a conexão 3G.

Gaza chega a 15 anos de cerco 

O ano de 2022 mostrou que os cinco territórios palestinos na Faixa de Gaza sitiada são, em sua essência, um matadouro. Em três dias, os militares israelenses mataram 49 pessoas. Outros quatro palestinos em Gaza também não resistiram a ferimentos sofridos em ataques anteriores por Israel.

2022 também ficou marcado pelos 15 anos desde o início do bloqueio de Israel à Faixa de Gaza, oficialmente iniciado em 2007. No entanto, como defende o site de notícias Mondoweiss, o bloqueio realmente não se iniciou em 2007, mas foi gradualmente inserido nas vidas dos palestinos em Gaza. Além disso, o modelo de impunidade em Gaza foi expandido para a Cisjordânia, onde os métodos israelenses de punição coletiva  - experimentados e testados - foram utilizados durante a ofensiva militar israelense contra cidades e aldeias da Cisjordânia. 

A ONU esperava que Gaza se tornasse inabitável até 2020. Dois anos mais tarde, a Faixa de Gaza não só é inabitável como foi submetida a dois ataques militares de larga escala.

Operação Breaking Dawn matou 52 em Gaza

Nos primeiros dias de Agosto, todos os olhares se voltaram para a Faixa de Gaza, onde pela segunda vez num ano, Israel lançou uma ofensiva militar no enclave costeiro sitiado. Divulgado como um ataque "preventivo", Israel lançou a Operação Breaking Dawn no dia 5 de Agosto, quando o exército israelense afirmou ter como alvo oficiais militares de alto nível no coração do movimento da Jihad Islâmica Palestina (PIJ). 

Muitos dos conhecidos combatentes e líderes da PIJ que foram mortos nos primeiros ataques aéreos, contudo, não estavam envolvidos em combate quando foram atingidos e foram alvejados em áreas residenciais. Como resultado, muitos dos mortos no primeiro dia dos ataques foram não combatentes, incluindo várias crianças. 

Os ataques continuaram por mais dois dias, tendo como alvo áreas por toda a Faixa de Gaza, com o PIJ respondendo com foguetes em direção ao território israelense. Quando Israel fechou todos os postos de fronteira dentro e fora do território, a única central eléctrica de Gaza foi encerrada devido à escassez de combustível, mergulhando os residentes de Gaza na escuridão enquanto os ataques aéreos continuavam à sua volta. 

Às 23h30 do dia 8 de Agosto, três dias após os primeiros ataques aéreos, um cessar-fogo intermediado pelo governo egípcio entrou em vigor, e a "Operação Breaking Dawn" chegou ao fim. No total, 49 palestinos foram mortos durante os três dias de ataques aéreos, incluindo 17 crianças. Nenhum israelense foi morto. 

Menos de 10 dias após o fim da ofensiva, o exército israelense admitiu ter conduzido o ataque aéreo que matou cinco crianças palestinas enquanto visitavam o túmulo do seu avô, depois de inicialmente ter culpado as mortes por um erro do PIJ. A vítima mais jovem do ataque tinha apenas três anos de idade.

Resistência palestina armada ressurge na Cisjordânia

À luz da Operação Quebrar a Onda, os combatentes armados da resistência palestina tornaram-se mais comuns na Cisjordânia. Durante os últimos anos, a maior parte da resistência armada contra as forças israelenses e o colonialismo de ocupação veio da faixa de Gaza sitiada, mas este ano a resistência armada aumentou a partir da Cisjordânia e para além da Linha Verde (as comunidades palestinas que vivem no interior do Estado israelense). As operações de tiroteio em Março de 2022 visaram israelenses dentro das fronteiras formais do Estado israelense e foram algumas das primeiras atividades armadas que instigaram a resposta israelense.

No entanto, a resistência armada organizada na Cisjordânia tem-se concentrado quase exclusivamente em alvos militares e coloniais israelenses. A maioria das operações armadas conduzidas pelos vários grupos armados foram de natureza defensiva, respondendo a invasões israelenses ou invasão de locais palestinos. Muitos desses combatentes da resistência são jovens, e alguns têm ligações com as Forças de Segurança palestinas, o que indica uma cisão com o colaboracionismo e cumplicidade da geração mais velha com o domínio colonial israelense.

Embora os grupos armados operem individualmente, estes são guiados por um sentido de unidade que transcende a filiação às organizações. Isto significa que, quer alinhados com uma estrutura de limpeza islamista, como o PIJ ou o Hamas, quer com um grupo mais secular, como a Brigada dos Mártires Al-Aqsa da Fatah ou a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), todos estes esforços de resistência têm sido guiados sob um guarda-chuva comum. 

Os ataques de "lobo solitário", em contraste com os grupos organizados, foram de natureza ofensiva, atingindo alvos militares e coloniais israelenses, frequentemente sem muito planejamento prévio, e conduzidos a partir de um alcance à queima-roupa utilizando ferramentas primitivas (facas, pistolas, ou ataques com veículo). A natureza descentralizada destas operações e a ausência de uma estrutura organizacional formal tornaram-nas difíceis de antecipar e prevenir, colocando um desafio significativo à comunidade de inteligência israelense. Um dos exemplos mais proeminentes foi a partir deste ano, quando o combatente da resistência palestina Udai Tamimi matou um soldado israelense num tiroteio no posto de controle militar de Shuafat, fugindo da apreensão durante quase duas semanas de uma longa caçada, antes de finalmente sair do esconderijo e cometer um último ataque à entrada do assentamento de Maale Adumim, onde foi alvejado e morto.

Mas estas operações individuais não são novidade e têm sido precedidas por centenas de operações semelhantes desde 2015. O nascimento de grupos oficialmente organizados, por outro lado, é especialmente único no último ano. A série de assassinatos de combatentes proeminentes da resistência palestina adicionou mais combustível ao fogo e acelerou o aparecimento dessas organizações. Jovens como Ibrahim Al-Nabulsi, apelidado de "Leão de Nablus", se tornaram ícones que ecoaram para além dos limites de Nablus e se expandiram para outras áreas na Cisjordânia. Batalhões de jovens, tais como o "Batalhão de Nabulsi", ganharam vida em muitas cidades e aldeias.

Sem treino militar institucional ou formal, a ascensão de grupos armados como a Brigada Jenin e a Cova dos Leões levou a juventude a organizar os seus próprios grupos locais, ainda que mais pequenos e sem muitas armas. Em Ramallah e Al-Bireh, por exemplo, um grupo descentralizado de jovens formou o "batalhão de irrupção noturna", concentrando-se em confrontar as invasões israelenses com cocktails Molotov e lançamento de pedras. 

Ao mesmo tempo, quando os jovens tentaram se organizar, a Autoridade Nacional Palestina foi apanhada no meio. Por fim, ANP desempenhou o papel que sempre exerceu: mais um representante da repressão israelense. A autoridade prendeu vários combatentes da resistência em Setembro, o que desencadeou uma campanha maciça de desobediência civil em Nablus. Mais tarde, em Outubro, a ANP desempenharia um papel fundamental ao oferecer uma alegada anistia aos combatentes da resistência em troca de se entregarem e entregarem as suas armas. 

O ano de 2022 ilustrou o completo desligamento da ANP das preocupações da sociedade palestina, enquanto a sua incapacidade de satisfazer a necessidade de proteção dos palestinos contra o apagamento colonial nunca foi tão acentuada.

Número recorde de palestinos mortos na Cisjordânia em décadas

O ano de 2022 registou o maior número de palestinos mortos na Cisjordânia desde a Segunda Intifada: mais de 230 palestinos, 171 na Cisjordânia. A grande maioria deles foram mortos durante operações de busca e apreensão ou durante uma operação extrajudicial de assassinato, especialmente em Nablus e Jenin. 

Dos 171 palestinos mortos na Cisjordânia, 36 eram crianças e menores de idade. Isto significa que, de cada cinco palestinos mortos por Israel, um era uma criança. O mês mais sangrento foi Outubro, com 30 palestinos mortos pelas forças israelenses num único mês, oito dos quais eram menores.

Esta intensificação mostra uma virada sangrenta na abordagem israelense à resistência palestina, evidenciada ainda mais pelo afrouxamento da política de fogo aberto de Israel e pelo regresso da estratégia de décadas de Israel de assassinato extrajudicial.

Um crime ilegal a nível internacional, as execuções extrajudiciais na Cisjordânia indicam que foram dadas orientaçõesàs forças israelenses para utilizarem força excessiva. Crianças como Fulla Masalma, de 14 anos, sofreram as consequências, morta num carro que passava  por Betunia e foi baleado durante 3 minutos e 55 segundos sem interrupções. 

A cobertura do site Mondoweiss destas mortes mostrou este padrão de conduta deliberadamente letal, tornado mais claro pela continuação da resistência palestina mesmo durante períodos de menor mortalidade - o que significa que o elevado número de mortes palestinas é uma decisão preventiva israelense, uma questão de política deliberada muito desconectada dos desenvolvimentos em solo. A estratégia por trás da prática obscena de brincar com a contagem de corpos palestinos é clara: aumentar o preço da resistência para que os palestinos abandonem a luta. Copa do Mundo vê níveis de solidariedade palestina sem precedentes 

A Copa do Mundo de 2022 no Qatar foi o primeiro evento esportivo global realizado no Oriente Médio. Como resultado, tudo sobre o evento estava nas manchetes. Estas que, nos meios de comunicação ocidentais, estavam muitas vezes cheias de parcialidade e intolerância e muitas vezes contradiziam o que os fãs estavam de fato relatando no local do evento.

Uma coisa que fez as manchetes, e atraiu críticas e aclamações de todo o mundo, foi a presença da Palestina no palco central do Qatar, tanto dentro como fora do campo. Símbolos emblemáticos da Palestina, como a bandeira e o lenço Keffiyeh, estavam presentes nos estádios em quase todos os jogos, nas multidões nas ruas, nas transmissões televisivas internacionais, e nos parques para fãs.

Plataformas de comunicação social como Instagram e TikTok foram inundadas com vídeos de fãs de todo o mundo que se recusavam a falar com repórteres israelenses ou interrompiam transmissões ao vivo de canais de televisão israelense para manifestar o seu apoio à Palestina. 

Para os palestinos, as manifestações de solidariedade foram significativas e ofereceram o que parecia ser um vislumbre de esperança muito necessário no meio de um ano tumultuado e sangrento na Palestina. 

"Foi um alerta para os israelenses que quaisquer ilusões que acreditavam ter conseguido fazer através dos Acordos de Abraão, na verdade ainda não são bem-vindos no mundo árabe", disse Jalal Abu Akhter, um fã de futebol palestino de Ramallah, à Mondoweiss. "O povo não esquece a ocupação. O povo não esquece o apartheid".

Israel elege o governo mais inclinado a direita da história 

Israel realizou a sua quinta eleição consecutiva em apenas quatro anos, no dia 1º de novembro, e os resultados foram claros: o povo israelense quis Benjamin Netanyahu de volta. Desta vez, porém, não haveria espaço para conversa com os tais "centristas", partidos árabes, ou com a há muito esquecida "esquerda" israelense. Foram os partidos abertamente de direita fascista que ganharam expressivamente, e o fizeram principalmente com base numa plataforma de supremacia judaica e racismo anti-palestino, liderada por legisladores que tinham sido anteriormente condenados por incitamento ao racismo e apoio a uma organização terrorista. 

O partido ultra-nacionalista do Sionismo Religioso, liderado por Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, surgiu como o terceiro maior partido do novo governo de Israel, concedendo aos dois legisladores, que têm um histórico sórdido de serem abertamente fascistas e firmemente anti-palestinos, novos níveis de poder que eles, e os seus apoiadores, nunca tinham visto antes. 

O próprio Ben-Gvir foi condenado por incitação contra palestinos e, no passado, forneceu representação legal a extremistas judeus acusados de cometerem ataques contra os palestinos. 

O novo governo de Netanyahu tomou posse em 29 de dezembro, e Ben-Gvir e Smotrich vão assumir cargos de alto nível nos ministérios da Defesa e da Segurança Nacional. Os seus cargos no novo governo deram aos dois - ambos colonos vivendo na Cisjordânia ocupada - grande poder sobre os assentamentos ilegais na Cisjordânia e sobre a polícia israelense. 

Um projeto de lei procura alterar os regulamentos policiais para permitir que Ben-Gvir, na sua posição como Ministro da Segurança Nacional, consolide o controle sobre o chefe da polícia e as investigações policiais, o que poderia ter implicações significativas quando se trata da já lamentável taxa de investigações policiais sobre ataques coloniais contra palestinos na Cisjordânia.

A esperança para 2023

2022 foi um dos anos mais sangrentos para os palestinos na história recente.  A tentativa de Israel de aumentar o preço da resistência palestina levou à morte de centenas durante a Operação Quebrar a Onda. No entanto, 2023 parece que será ainda mais tumultuoso à medida que o Estado israelense parece estar pronto para desencadear uma onda renovada de repressão. 

No dia 27 de dezembro, o Knesset aprovou uma emenda à Lei Básica que concederia a Bezalel Smotrich o poder de nomear o novo chefe da Administração Civil e o Coordenador das Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT). O Ministro da Defesa de saída Benny Gantz alertou para as escaladas esperadas que resultariam das duras políticas de Smotrich e Ben-Gvir,  os quais estão previstos para assumirem posições de influência em relação a política da Cisjordânia no seio do novo governo israelense de direita. 

Os contornos para 2023 não serão difíceis de prever. A atual confiscação colonial de terras palestinas, a limpeza étnica das comunidades palestinas, os raivosos ataques de linchamentos por colonos, e o ataque total às comunidades palestinas revolucionárias e aos abrigos da resistência armada - tudo isto deverá continuar no ano de 2023, com uma ferocidade ainda maior do que antes.

Mas o único fator que permanece incerto também significa tudo: qual será o destino da resistência palestina?

Yumna Patel é a Diretora de Notícias da Palestina para Mondoweiss.

Mariam Barghouti é a Correspondente Sénior da Palestina para Mondoweiss.

Faris Giacaman é o Editor Chefe para Mondoweiss.

Photo: Magne Hagesæter / Flickr

Available in
EnglishPortuguese (Brazil)Spanish
Authors
Yumna Patel, Mariam Barghouti and Faris Giacaman
Translators
João Afonso Diniz Paixao and Rodolfo Vaz
Date
10.01.2023
Source
Original article🔗
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