Este texto é uma versão do artigo publicado originalmente em português no site do OPEB (Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil) que pode ser conferida aqui.
Os Yanomami são um dos mais representativos povos originários do mundo, pelo volume da população, com mais de 28 mil indígenas em oito comunidades. e por manterem sua cultura tradicional. O Território Indígena (TI) Yanomami, localizado em uma área com mais de nove milhões de hectares, entre os estados do Amazonas e Roraima, foi homologado há exatos 30 anos, e hoje vive o crescente aumento dos conflitos socioambientais na região.
Conforme o relatório da Hutukara Associação Yanomami, há mais de vinte mil garimpeiros ilegais na reserva, em busca de ouro, cassiterita e outros minérios. A presença do garimpo na reserva acarreta inúmeros conflitos, além de problemas perpetuados há muito tempo na Terra Yanomami. A mineração garimpeira é historicamente interpretada como uma atividade de mineração individual ou realizada por pequenos grupos. Hoje, no entanto, pode ser mais bem compreendida como uma atividade que vai desde a mineração individual/pequena até a bem organizada, intensiva em capital, assemelhando-se à mineração industrial, e capaz de transportar toneladas de minerais.
Entre os problemas críticos está o aumento do desmatamento no território demarcado (necessário para garantir seu modo de vida), além de formas extremas de violência – como o abuso sexual enfrentado por mulheres e crianças. Além disso, há uma grande carência na prestação de serviços de saúde pública, cujas consequências são agravadas por doenças (como a malária) trazidas pelos garimpeiros, cujo trabalho leva à contaminação da água e da terra por materiais pesados, como o mercúrio.
Além dos ataques realizados pelos garimpeiros invasores, as comunidades indígenas também vêm sendo alvo do governo Bolsonaro. Em 2020, foi apresentado um Projeto de Lei (PL 191/2020) que tem como principal objetivo regulamentar a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em terras indígenas. O PL 191/2020, de autoria do Poder Executivo, voltou a ser discutido depois que o governo entrou com pedido de urgência, justificando sua necessidade pelo conflito na Ucrânia e a crise dos fertilizantes à base de potássio. A afirmação do Executivo foi desmentida por diversos pesquisadores do tema.
A legalização da mineração industrial e do garimpo em terras indígenas, em especial na Amazônia, é um dos principais objetivos do atual governo federal. Desde o início do governo Bolsonaro, a atividade garimpeira encontrou em Roraima novos meios para aumentar a quantidade de ouro exportado ilegalmente. Há muito tempo, Roraima lida com garimpos ilegais e sua economia local foi estruturada ao redor dessas atividades, que acabaram formando as bases sociais, culturais e econômicas da sociedade urbanizada naquela região. Somente em 2019, foram exportados 194 kg de ouro à Índia, somando US$6,5 milhões, tornando-se o segundo produto mais exportado pelo Estado, atrás somente da soja, segundo dados do sistema Comex Stat do Ministério da Economia.
Antes, o ouro extraído costumava ser negociado apenas no mercado clandestino e sua origem não constava nas estatísticas do governo. Atualmente, ao menos uma parcela das transações tem integrado os cadastros federais. De acordo com a BBC News, investigadores trabalham com as hipóteses de que o garimpo ilegal cresceu tanto que ficou difícil ocultá-lo dos registros oficiais, além da possibilidade de haver um esquema para fraudar a origem do ouro proveniente de áreas indígenas e do contrabando advindo da Venezuela.
Apesar de a legalização das atividades extrativistas ser de interesse pessoal de Bolsonaro, como já manifestou em algumas ocasiões, não se trata de uma ação particular, mas sim um antigo intuito do Exército Brasileiro. A visão dos militares para a Amazônia está fundamentada na percepção da região como detentora de valiosa riqueza natural, ao passo que corresponde a um grande vazio demográfico isolado do restante do país. Isso representaria um risco à soberania e à segurança nacional, já que a presença indígena não é vista como garantidora do domínio nacional sobre a região – pelo contrário.
Durante a Ditadura Militar (1964-1985) e sob o mote do “integrar para não entregar”, defendido pelo general Golbery do Couto e Silva, os militares levaram adiante diversos projetos para ocupação e ‘desenvolvimento’ da Amazônia, como a abertura de estradas e incentivo à atividade mineradora e à colonização, por meio de projetos de assentamento de pequenos agricultores. Também concederam incentivos a latifundiários para compra da terra, derrubada da floresta e implantação de atividades agropecuárias. Em 1993, por exemplo, o governo Figueiredo promulgou o Decreto 88.985, que abriu a possibilidade da mineração empresarial em terras indígenas. Com a redemocratização, a mineração nessas terras voltou a ser proibida por meio da Portaria 692 do Ministério das Minas e Energia (MME), editada em 10 de junho de 1986.
Esses empreendimentos produtivos na região, aliados à concepção de segurança e soberania nacional, têm em comum desconsiderar a ocupação que indígenas fazem do território desde os tempos imemoriais, e, desta forma, negam a esses povos o direito sobre a destinação das formas de uso de seus próprios territórios. O estímulo a tais empreendimentos vem acompanhado da colonização realizada em função de medidas que, de forma direta ou indireta, favorecem a migração de pessoas de outras partes do país para a Amazônia – levando consigo valores culturais e formas de meios de vida que não têm paralelo com a identidade de povos indígenas, ou mesmo de outros povos e comunidades tradicionais habitantes da região.
Uma história de violência
A violência contra os povos originários não é nova, e chegou a extremos com a disseminação proposital de doenças, incêndios de aldeias e despejo de bombas por aviões com o objetivo explícito de matar indígenas, nas décadas de 1940, 50 e 60. Esses crimes, cometidos por latifundiários e servidores públicos do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), foram apontados pelo Relatório Figueiredo, documento com mais de 7000 páginas escrito em 1967 pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, e que ficou escondido até ser descoberto por um pesquisador em 2012.
No caso dos Yanomami, a desumanidade para com esse povo teve início com o impulso do projeto Radam, o primeiro mapeamento mineral da região amazônica, em 1970. A partir daí, projetos de desenvolvimento do Estado, promovidos pelos militares, começaram a submeter os Yanomami a formas de contato intensas devido à expansão da fronteira econômica regional: estradas, projetos de colonização, fazendas, serrarias, canteiros de obras e os primeiros garimpos.
Entre 1987 e 1990, no auge da “corrida pelo ouro”, diversas pistas de pouso clandestinas foram abertas no curso superior dos principais afluentes do rio Branco para facilitar o garimpo – logo após a publicação da Portaria 612/1986 do MME, abrindo espaço para que a região atingisse o marco de 40 mil garimpeiros – invasão que levou à morte de mais de 15 mil indígenas. Esse foi o elemento que faltava para o disparo de ilegalidades na área.
E, para fortalecer esse movimento, foram editados 19 decretos federais, seguindo a sequência do Decreto 97.512 ao 97.530 (16 de fevereiro de 1989), por meio dos quais o governo de Sarney homologou a redução da área total dos povos indígenas Yanomami a 2.4 milhões de hectares — antes 9.4 milhões de hectares de acordo com o Decreto nº 1817 (FUNAI, 08 de janeiro de 1985). O decreto de Sarney transformava a reserva Yanomami em 19 áreas descontinuadas ou também chamadas de “ilhas” – um projeto defendido pelos militares – e que resultaria na fragmentação da cultura, dos laços sociais e da capacidade de reprodução do povo Yanomami.
Contrariando a afirmação da professora Manuela Carneiro da Cunha de que “a sócio-diversidade é tão preciosa quanto a biodiversidade”, a lógica militar na busca por uma integração nacional traz demandas para que sociedades indígenas sejam integradas à cultura Ocidental dos imigrantes de origem europeia, dentre outras, que vieram ao Brasil. Não reconhecem a argumentação antropológica de que povos indígenas devem ter sua cultura e identidade reconhecidas e respeitadas – afinal, padronização cultural e étnica é desejo que, ao longo da história, foi defendido por líderes autoritários, antidemocráticos.
Segundo Bertha Becker, a Amazônia é um exemplo vivo da geopolítica do século XXI, onde interagem e se confrontam diferentes percepções em distintos níveis. Uma dessas esferas é a de movimentos internacionais, como o que ocorre em nível do sistema financeiro, da tecnologia da informação e das disputas entre as potências pelo poder hegemônico; outra esfera é a das percepções de agentes sociais organizados, corporações, organizações religiosas, movimentos sociais etc.
Uma análise histórica da doutrina militar, presente nas diretrizes do Exército Brasileiro, mostra que a instituição esteve preocupada em promover um tipo de integração espacial da Amazônia que tem por base a orientação conservadora de extrair ao máximo sua riqueza material. Essa perspectiva também identifica a presença de outros agentes sociais na geopolítica regional, ressaltando preocupação quanto ao papel dos “atores transnacionais públicos não-estatais” — tais como as organizações não governamentais (ONGs). Quer dizer, a leitura de que ONGs possuem uma missão estranha aos interesses patrióticos não é uma novidade da história recente, possui um rastro na doutrina militar brasileira.
O jornal The Intercept revelou, em 2019, o “Projeto Barão do Rio Branco”, criado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e coordenado pelo coronel reformado Raimundo César Caldenaro. O Projeto Barão do Rio Branco é descrito como o maior plano de ocupação e “desenvolvimento” da Amazônia, e prevê o incentivo a grandes empreendimentos que atraiam população não indígena de outras partes do país para se estabelecer na Amazônia e aumentar a participação da região Norte no Produto Interno Bruto do país.
No texto, há menções sobre a preocupação com a presença de estrangeiros na Amazônia, sobretudo em relação à fronteira com o Suriname, país que recebe investimento e imigrantes da China. Além disso, a presença de ambientalistas, ONGs e até da Igreja Católica são vistos com preocupação pelo Exército, pois, na concepção da Arma, permitiriam uma suposta internacionalização da Amazônia – o que implicaria na perda de soberania do Brasil sobre parte de seu território. Ocorreria o perigo, na visão militar, de que ONGs e outros grupos advogassem pela separação de terras indígenas do território nacional.
Outro documento recente vinculado aos militares brasileiros é o “Projeto de Nação” lançado por oficiais generais do Exército por meio do Instituto Sagres, um think tank criado por militares ligados ao general Eduardo Villas Bôas. O projeto traz, novamente, a preocupação com a “incerteza crítica” sobre a integração da Amazônia ao domínio do poder político nacional, o que na prática é uma forma de manifestação de receio sobre a possibilidade de o país perder ingerência na região. Segundo essa visão, outros países e organizações internacionais poderiam argumentar pela separação de terras indígenas do território nacional, pela incapacidade do Brasil de defender direitos humanos dos povos indígenas, e de fazer a gestão sustentável dos recursos naturais de uma floresta que é provedora de bens públicos globais, como a regulação climática, a biodiversidade e a produção de água doce.
Esses oficiais militares defendem que o Brasil deveria assumir para os próximos treze anos, como diretriz, “remover restrições da legislação indígena e ambiental, que se conclua serem radicais, nas áreas atrativas do agronegócio e da mineração” (SAGRES, 2022). A fundamentação para as ações de enfrentamento que Bolsonaro pessoalmente manifesta, assim como aquelas defendidas por membros de seu governo e forças que o apoiam, estão ligadas a essa visão deturpada sobre o significado da Amazônia para um projeto de país.
Esta visão é deturpada por não considerar os direitos humanos, em especial o direito de povos indígenas, como fundamental. Deturpada por desconsiderar o significado e as implicações do artigo 225 da Constituição Federal, que propugna que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Deturpada por não reconhecer que temas como mudanças climáticas, biodiversidade, florestas, espécies ameaçadas de extinção, dentre outros, são tratados por regimes internacionais ratificados pelo Brasil. Deturpada porque não reconhece que, somadas todas as áreas, os indígenas controlam hoje apenas 11,6% de um território que foi inteiramente deles.
A permissividade com a atuação de garimpeiros na TI Yanomami acaba sendo um reflexo direto dessas dimensões, que dão privilégios a atividades mineradoras e agrícolas no intuito de promover uma “integração nacional”, com a incorporação dos indígenas como força de trabalho como algo desejável e positivo.
Portanto, a atual situação na TI Yanomami é mais uma encruzilhada histórica no Brasil de confrontos entre visões e projetos de sociedade antagônicos. Detalhamos a percepção dos fardados quanto à ocupação do território amazônico. Em outra oportunidade, o OPEB demonstrou formas de promover iniciativas de conservação da biodiversidade e integração bioeconômica na Amazônia, tendo como princípio o respeito à autodeterminação dos povos indígenas.
Após 30 anos de demarcação do território Yanomami, a sociedade civil brasileira deve a essa população respeito e apoio às suas formas de organização e subsistência, e deve garantir que as prioridades desses povos sejam reconhecidas na concepção e implementação de políticas e projetos de governo na Amazônia – como em outras regiões e terras indígenas. Mercados ilegais devem ser cortados e alternativas para sustentar a economia local em Roraima devem ser apresentadas. A questão que se descortina a partir das dinâmicas atuais no território Yanomami é: essa realidade pode ser transformada? Quem estará do lado dos Yanomami para essa mudança?
É verdade que a preocupação internacional cresce diante das ameaças aos povos e territórios indígenas existentes no Brasil. É possível perceber os olhares atentos da comunidade internacional para casos como o desaparecimento do indigenista Bruno Pereira, da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do jornalista britânico Dom Phillips, no oeste do Estado do Amazonas, em destaque na mídia internacional.
A pressão e o apoio internacional diante de temas como este são de suma relevância, pois conduzem à redução de barbaridades. Um exemplo é o primeiro caso de genocídio no Brasil reconhecido formalmente pela Justiça, o “massacre de Haximu” (1993), em Roraima. Em setembro de 2021, durante a abertura da 48ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a alta comissária para Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Michelle Bachelet, manifestou “grande preocupação” com a violência aqui encontrada e fez menção ao povo Yanomami.
Ela também pediu ao Brasil que reverta “políticas que afetam negativamente os povos indígenas” e que não abandone a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Convenção dos Povos Indígenas e Tribais. Além disso, em maio deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) também cobrou medidas para proteger o povo Yanomami. O direito à vida, integridade pessoal e saúde dos Povos Indígenas Yanomami, Ye`kwana e Munduruku, fundamentados no respeito às suas culturas, foram decididamente cobrados pela Comissão.
Aqueles que temem pela perda de soberania brasileira sobre territórios indígenas, e sobre o Yanomami em particular, poderiam estar tranquilos: bastaria garantir que o Estado brasileiro cumprisse suas obrigações constitucionais, bem como os tratados internacionais ratificados, e promovesse a garantia dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável.
Os autores fazem parte do Grupo de Trabalho sobre Meio Ambiente, Clima e Agricultura do OPEB da Universidade Federal do ABC (UFABC), Brasil.
Ilustrações: Gabriel Silveira