A notícia de que a família Bolsonaro, em sua trajetória política, acresceu 107 imóveis a seu patrimônio, 51 deles adquiridos em dinheiro vivo, contrasta com a realidade de milhões de brasileiras e brasileiros que vivem sem-teto e com o fato do presidente ter cortado 95% do orçamento para moradia para o ano de 2023. Ironia ainda mais trágica quando lembramos que foi justamente a pretensa propriedade de apenas um imóvel, um triplex no litoral do estado de São Paulo, que deu base à perseguição política que resultou na prisão de Luiz Inácio Lula da Silva em 2018, tirando o ex presidente da disputa eleitoral que ele, até então, liderava.
Movimentos sociais, como o Movimento de Trabalhadoras(es) Sem-Teto (MTST), por exemplo, atuaram na denúncia desses absurdos, quando, por exemplo, ocuparam o triplex em questão em abril de 2018 para mostrar a farsa da condenação de Lula, ou quando promoveram, em setembro de 2021, ação de denúncia em frente a uma das mansões do senador e filho do presidente, Flávio Bolsonar – uma das propriedades compradas em dinheiro vivo, no valor de R$ 6 milhões (mais de U$ 1 milhão), enquanto 19 milhões de brasileiras(os) passavam fome. Dados atualizados este ano mostram que já são 33 milhões de brasileiras(os) sem ter o que comer.
33 milhões de pessoas que também coincidem com um universo de milhões de famílias que sofrem com o problema da moradia. Atualmente, os dados sobre a demanda por moradia varia entre 5,8 milhões e 7,78 milhões de famílias precisando de moradia, a depender da metodologia utilizada. Ademais, o último censo apontou a existência de 6,07 milhões de imóveis desocupados. Isso ocorre em um país em que a Constituição define a moradia como um direito social e que a propriedade privada deve cumprir obrigatoriamente uma função social.
Parte expressiva desse déficit habitacional tem crescido em virtude do comprometimento mais de 30% da renda familiar com aluguel. Uma famílias que recebe 1 salário mínimo (R$ 1.212, ou aproximadamente U$ 240) não encontra um imóvel para alugar nas principais cidades brasileiras por menos de R$ 800 (algo em torno de U$ 160). O valor médio do m2 no país, para locação, gira em torno de R$ 30 (U$ 6). Nesse cenário, para um imóvel de 40m2, o valor estimado estaria em R$ 1200, o valor de um salário mínimo. Em um momento de forte desemprego, elevado grau de informalidade e inflação descontrolada, milhões de famílias são obrigadas a escolher entre ter comida na mesa ou garantir o pagamento do aluguel para ter um teto onde dormir.
Portanto, não existe um processo de crise ou escassez de moradias em nossa sociedade; existe a crise de um modelo capitalista de acesso à moradia, que estabelece que, dentro de um país com trajetória colonial de concentração fundiária, a terra e o teto sejam mercadorias, em um contexto em que o parque imobiliário socialmente construído deveria ser repartido como direito e necessidade social básica. Os movimentos sociais brasileiros criaram vários lemas em relação a isso. “Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa”; “Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito” e tantos outros que ilustram essa realidade.
Esses ingredientes são a receita perfeita para o acirramento da luta de classes nas nossas cidades. Por um lado, a atuação dos movimentos sociais e organizações populares tem sido fundamental para enfrentar essa crise, com avanços históricos do ponto de vista da incorporação da moradia como direito e da formulação de diversas políticas e ferramentas legais. Por outro lado, essa luta esbarra em estruturas de poder.
A última década acentuou esses conflitos, com o aprofundamento da especulação imobiliária, a realização de mega eventos no país (Copa do Mundo em 2014, Olimpíadas em 2016), o impacto de mudanças climáticas e a expressão do racismo ambiental, a militarização dos territórios a partir de uma lógica de segurança pública que agravou o genocídio da população negra e o encarceramento em massa.
Mesmo com todo esforço de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, essa tendência de violações de direitos nas cidades, em especial o direito à moradia, se reafirmou, especialmente depois do golpe de 2016, que tirou a presidenta Dilma Rousseff do poder.
Mas nada disso chegou próximo ao que foi promovido pelo governo Bolsonaro. Elencamos alguns dos fatos que apontam a tragédia deste governo em relação à moradia:
Posto isso, apesar da derrota conjuntural, é preciso reconhecer que é um processo reativo ao campo de forças sociais que pensam um novo sistema. E mesmo em uma conjuntura extremamente adversa, foi possível acumular forças. Destacam-se, neste sentido, duas iniciativas. A Campanha Despejo Zero e a Conferência Popular pelo Direito à Cidade. A Campanha, que articulou mais de 100 organizações do campo e da cidade, dentre elas o Movimento de Trabalhadoras(es) Sem-Teto (MTST) e o Movimento de Trabalhadoras(es) Sem-Terra (MST). Criada em 2020, conseguiu não apenas produzir dados de denúncia sobre a tragédia das remoções em massa, mas também consagrou marcos importantes na defesa do direito à moradia. O principal caso foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828 (ADPF 828), instrumento legal encaminhado junto ao Supremo Tribunal Federal que serviu para prevenir despejos até 31 de outubro de 2022 – uma vitória na Suprema Corte que seria inimaginável 2 anos atrás e que só foi possível pela grande unidade e mobilização de organizações e movimentos.
A iniciativa da Conferência remonta o que há de mais pulsante na trajetória de organizações dos movimentos sociais e organizações urbanas do país, que servem de referência para o mundo. Em um processo iniciado no final de 2021, mais de 600 organizações por todo país organizaram mais de 200 eventos preparatórios e reuniram mais de 600 militantes em uma atividade em São Paulo, em junho deste ano, para consolidar uma plataforma de lutas a partir de 16 eixos.
Estes processos de luta pelo direito à cidade e pela moradia não estão, igualmente, isolados no espaço. Mais recentemente, vimos acontecer um feito histórico na Alemanha. Berlim, em meio ao maior referendo da sua história, aprovou por maioria a expropriação das grandes corporações de aluguel, a partir de uma campanha construída por anos. A luta pela Constituinte no Chile também foi acompanhado por um processo intenso de mobilização em defesa do direito à moradia, que o incorporou no texto da nova Constituição via emenda popular.
Essa experiência não difere das quase 200 mil assinaturas que garantiram a incorporação dos artigos sobre a política urbana na Constituição Federal Brasileira em 1988 ou as mais de 1 milhão de assinaturas que encaminharam ao Congresso Brasileiro a proposta de criação do Fundo Nacional de Moradia Popular em 1992, que daria base para a proposta de criação de um Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, aprovada em 2005.
Sendo assim, é preciso reconhecer que este período também vem sendo marcado por processos de construção de unidade e pela capacidade criativa dos movimentos em criar novas utopias. É pensando nessa agenda de acúmulo de forças, que trazemos a imaginação política em forma de propostas que ilustram subsídios gerados nessas experiências citadas. Apresentaremos isso em forma de 10 pontos fundamentais.
Fortalecer organizações populares voltadas para produzir soluções e
espaços de participação.
2. A Política Habitacional também demanda a criação de um grande programa de investimento em urbanização das periferias e favelas (envolvendo água, esgoto, mobilidade, áreas verdes, habitação, regularização fundiária, produção habitacional, controle de riscos ambientais, entre outros) e de construção de redes de equipamentos sociais de qualidade, de educação, creches, saúde, cultura, lazer e esporte. Esse programa deve focar na construção de planos populares como ferramentas de planejamento com alianças entre universidades, organizações sociais e atores comunitários e ter sua implementação a partir de parcerias público populares, envolvendo diversos entes federados e entidades populares. A intervenção urgente na periferia é para a garantia de direitos. Deve ser feita com política, e não polícia e militarização. Que esses investimentos apontem para cidades com justiça climática, no enfrentamento ao racismo ambiental e ao processo de violação de direitos das populações negras e indígenas.
O que definirá se viveremos um momento histórico de implementação dessas diretrizes é a capacidade de fazer luta social. Historicamente, a moradia foi um grande fator de aglutinação das lutas no Brasil. Nos últimos anos, o MTST realizou ocupações capazes de mobilizar milhares de famílias em todo o país. Esse cenário de tensões não será resolvido se o Estado brasileiro continuar tratando a questão da moradia como questão de polícia, e não como questão de política.
Sendo assim, reafirmamos o papel estratégico de pensar o tema não apenas na perspectiva de recuperação da economia brasileira, mas, acima de tudo, na contribuição que o Brasil pode dar para pensar uma nova economia política das cidades, a partir de uma lógica de desmercantilização do espaço urbano, de valorização da vida, do comunitário e do comunal, de produção coletiva
Rud Rafael, coordenador nacional do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Sem-Teto, integrante da TELAR - Territórios Latino Americanos en Resistência, educador social da ONG Fase e professor universitário.
Ilustrações: Gabriel Silveira